Defesa Brasil


O Brasil e América do Sul como zonas estratégicas de Defesa e Retaguarda

.

Ajustando a análise e as escalas

1A América do Sul e o seu processo de integração em curso constituem um formidável laboratório para os analistas da cena internacional contemporânea do Pós-Guerra Fria. Nos últimos anos, sobretudo, a intensificação do processo de integração regional tem desencadeado movimentos de natureza político-estratégica (ou simplesmente geopolíticos) de diversas ordens e direções, em que alguns tendem à convergência, outros à dispersão e, outros ainda, no limite, ao antagonismo.

2Os estudiosos e os policymakers dos países da região e de fora dela, estão de modo geral convencidos de que também aqui se desenrolam eventos que poderão confirmar, ou jogar por terra, a validade das teorias e análises voltadas para uma adequada compreensão da natureza e das tendências dominantes do atual sistema internacional. E o mais tradicional, e ainda produtivo desses debates, é a interminável reiteração da antiga dicotomia entre as concepções que se abrigam nos campos do construtivismo e do realismo político.

  • 1  O filósofo alemão E. Kant, com o seu conceito de Paz Perpétua é considerado o “Pai-Fundador” dessa (...)

3Ela expressa, de um lado, as tendências de contração desse sistema como um todo (os movimentos centrípetos), processo que tem sido associado à construção de uma governança mundial que teria adquirido notável relevância com o fim da bipolaridade e para a qual, mais que os efeitos do clássico equilíbrio de poder entre as potências ou os estados em geral, a conquista da paz duradoura seria o resultado do funcionamento adequado e contínuo de um conjunto virtuoso de fatores políticos e institucionais. Trata-se de concepção que indica a predominância de um quadro geral cujos contornos sugerem a vigência do cenário traçado pelas antigas e novas teorias chamadas genericamente de construtivistas1. Nas suas formulações contemporâneas – ou do pós-Guerra Fria – foram incorporados ingredientes típicos da nossa época, como o recente crescimento e complexização do sistema internacional, que passa a integrar os novos atores estatais e não-estatais, os ganhos de legitimidade e de eficácia do Direito Internacional com as suas normas e regulações diversas e, especialmente, a constituição de uma Ordem Mundial que agora está assentada em um ativo multilateralismo e que tem sido posicionada no topo desse sistema. Segundo essa perspectiva, ainda, encontram-se nos demais estágios dessa pirâmide os diversos arranjos regionais em estágios variados de constituição e consolidação, os estados nacionais, as empresas transnacionais e uma miríade de organizações não-estatais com atuação internacional.

4Em posição contrastante, pontifica a corrente de pensamento que defende a permanência e mesmo o recrudescimento atual das perspectivas associadas ao realismo político, que valorizam sobremodo as leis de funcionamento de um sistema que é marcado estruturalmente, isto é, desde a sua origem com o advento do estado moderno ou soberano, pelas tendências de dispersão ou fragmentação (os movimentos centrífugos). Nessa acepção, por mais que se tenha instaurado uma ordem mundial decorrente da ampliação desse sistema, e que o direito internacional ou o “interesse geral” sejam relevados em determinadas circunstâncias, sempre prevalecerá a estrutural assimetria de poder e o interesse exclusivo dos estados no exercício legítimo das suas respectivas soberanias, e isto será mais explícito quanto mais observar-se o comportamento das grandes potências. Como decorrência geral, a vigência de uma situação de paz só seria viável se assentada em um equilíbrio de poder entre os estados e, especialmente, em uma complexa e permanente negociação envolvendo em algum nível as instituições, os instrumentos e os mecanismos dessa “governança” (a ONU dos 200 estados da Assembléia Geral) e o papel preponderante da superpotência e das potências mundiais (a ONU dos cinco com poder de veto no Conselho de Segurança). Nesse sentido, a conjugação de alguns fatores decisivos envolvendo os EUA, como a vitória dos republicanos e a proeminência de um grupo de policymakers ultra-realistas na política externa da Casa Branca e, destacadamente, os impactos do evento sem precedentes de 11 de setembro de 2001 com o ataque terrorista a esse país, seguido pelas invasões do Afeganistão e do Iraque e a crise que ora se desdobra ali com um cruento conflito, tem representado um considerável reforço a essas concepções.

  • 2  A evolução do sistema internacional na sua fase contemporânea, a partir do final da Primeira Guerr (...)

5O fato é que o atual cenário político mundial, como todos admitem, ostenta a marca da transição, na qual essas forças muitas vezes antagônicas podem atuar ao mesmo tempo e em um mesmo lugar e são capazes de provocar impactos de diversas intensidades e escalas. Diante desse quadro de incertezas e em circunstâncias similares, o melhor caminho a escolher é o de evitar a armadilha das dicotomias e conceber o sistema internacional atual enquanto uma configuração extremamente complexa, mutante e hierarquizada. Significa vislumbrá-lo em sua natureza multidimensional (para utilizar uma expressão de Raffestin), no qual se encontram integrados às suas instituições e normas legais e consuetudinárias de convivência, duas centenas de estados que operam atualmente em um contexto de globalização econômica acelerada. Reconhecer que nele também gravitam e se posicionam inúmeras expressões e frações do poder econômico, político e estratégico-militar. Dele também participam o desmesurado poder da única superpotência militar mundial, contrastado por um pequeno grupo de antigas e novas grandes potências; a emergência e a afirmação de um grupo maior de potências médias ou emergentes e, na base – ou na periferia desse sistema -, a grande maioria dos seus atores principais, formada por pequenos estados, sendo alguns dos quais tão pobres e fracos que em outros períodos da história correriam o risco de desaparecer e que, por isso, têm sido denominados pelo neo-realismo político norte-americano de weak states2.

6Posto de outro modo, e assumindo a dificuldade de concluir e optar por um ou mais padrões dominantes e suas respectivas concepções teóricas, não seria mais proveitoso incorporar uma antiga lição da geografia política, que nos recomenda procurar desvendar o sentido geral e as expressões concretas das relações internacionais a partir da identificação das suas particularidades e singularidades ou, em outros termos, mediante um esforço de territorialização ou de regionalização dos eventos políticos e político-estratégicos?

7Examinada sob essa perspectiva e tomando a ordem mundial em sua tripla dimensão geopolítica atual, isto é, enquanto - a) um sistema político sofisticado de escala mundial, crescentemente organizado e operando sob o impulso de uma acelerada globalização; b) uma forte tendência para a integração de macro-regiões de escala Sub-Continental e, c) a presença marcante de duas centenas de estados com os seus respectivos territórios e fronteiras nacionais e as suas regiões internas, que detêm um papel ainda relevante, malgrado a erosão do seu poder na atualidade –, fica-nos franqueada a possibilidade de capturar e desvendar processos em todas as camadas, esferas e fímbrias desse sistema, incluindo as situações de vivo amálgama entre tendências à primeira vista antagônicas, como as referidas acima.

8Em seus aspectos mais gerais, as características principais da integração sul-americana indicam que esta não difere muito das demais experiências congêneres em curso no mundo. Guardadas as particularidades dos países e suas respectivas regiões, tratam-se também aqui de processos nos quais as similaridades predominam sobre as diferenças: situações de contigüidade territorial-nacional cimentadas pelas identidades regionais-continentais convergentes; um histórico de relações de vizinhança marcadas por sucessivos estágios de cooperação, competição, rivalidades ou conflitos; uma concertação política inter-estatal com vistas a uma estratégia de mútua proteção diante de potenciais ameaças externas; a edificação de um sistema regional de comércio que promove a eliminação gradual das barreiras internas, aliada a uma política de bloco que permite a esses países atuar em melhores condições num ambiente de crescente competição internacional, dentre outros.

9Como último ponto da abordagem aqui proposta, queremos destacar o problema político e teórico da escala de análise envolvida nesse debate sobre a integração da América do Sul. Desde logo, firmamos a nossa posição de que para a geopolítica contemporânea, não existe essa entidade abstrata e indefinida chamada América Latina enquanto objeto teórico e empírico das relações internacionais. Não se trata aqui apenas de rejeitar a antiga denominação européia (de Napoleão III) para centenas de povos americanos – nativos, imigrados ou miscigenados - situados ao sul do Rio Grande, alguns deles, inclusive, sem nenhuma relação cultural com a “raiz latina”. Também não se limita ao desconforto diante da forte tradição que se cristalizou nos sistemas escolares, nas instituições acadêmicas e chancelarias européias e norte-americana, sobretudo, que nos agrupam indistintamente, como se expressássemos uma mesma identidade cultural e política ou compartilhássemos um projeto de futuro comum.

10O aspecto crucial é outro, e diz respeito ao processo em curso de constituição de novas entidades político-regionais - ou simplesmente geopolíticas - no Continente, esta sim, a força que tem impulsionado os estados e as sociedades nacionais na direção de arranjos políticos e econômicos – e sob certa medida, culturais – comuns. Esses processos de construção política de novas regiões se expressam, em primeiro lugar, na estruturação (em diferentes estágios) de três grandes Blocos Regionais de Comércio: o NAFTA, integrado pelos EUA, o Canadá e o México, o MERCOSUL, pelo Brasil, a Argentina, o Paraguai, o Uruguai e a Venezuela (o Chile, a Bolívia e o Peru possuem status de “países associados”) e o CAFTA, pelos países da América Central e a República Dominicana. Deve-se mencionar ainda o Pacto Andino, formado pela Colômbia, o Perú e o Equador, a CASA (Comunidade Sul-Americana de Nações) e a recém-criada ALBA (Alternativa Bolivariana para a América), lançada e liderada pelo Presidente Hugo Chávez da Venezuela e que integra, além deste país, Bolívia e Cuba.

  • 3  Dentre os inúmeros estudos sobre a história da integração européia, de quase sessenta anos, pode-s (...)

11Do ponto de vista político (ou geopolítico), entretanto, o mais interessante desses processos que se desenvolvem no Continente na atualidade, é aquele representado pelo conjunto de iniciativas e articulações envolvendo a América do Sul e que estão promovendo-a rapidamente para a posição de uma região geopolítica, isto é, uma entidade política transnacional dotada de unidade mínima e arcabouço institucional baseados em princípios e macro-objetivos comuns nas relações internacionais. Considerando as características básicas da sua formatação inicial e do seu desenvolvimento atual, esse modelo de arranjo regional constitui o único projeto, nessa escala, que procura reproduzir em seus aspectos gerais a experiência européia, na qual a ambição maior dos seus estados-membros sempre foi a de conjugar o máximo de integração econômica a uma macro-concertação político-institucional de natureza transnacional. Nesse sentido, ele distancia-se bastante do modelo convencional que tem sido adotado pela maioria dos demais Blocos Regionais, nos quais os limites da concertação entre os seus estados-membros estão previamente definidos e os objetivos encontram-se explicitamente circunscritos aos assuntos econômico-comerciais. É por isso que, guardadas as respectivas e óbvias particularidades dessas duas experiências atuais, a integração sul-americana tende a reproduzir aqui o percurso seguido até o presente pela União Européia3, no qual o horizonte estratégico mais dilatado que os seus construtores têm em mente, é a constituição e a consolidação de um vasto e engenhoso sistema regional-transnacional de governança.

  • 4  A idéia de tomar a América do Sul como uma região em construção aparece em um pequeno grupo de aut (...)

12Deste lado do Atlântico, e malgrado as oscilações nos fluxos de bens e capitais e as difíceis negociações envolvendo diversos contenciosos no comércio intra-Bloco, acentua-se o processo de consolidação do Mercosul nesses 13 anos (na prática) de seu funcionamento, e, por conseqüência, do seu papel de pólo aglutinador das relações econômicas de vizinhança na região como um todo. O recente ingresso da Venezuela e, ao que tudo indica, num futuro próximo, da Bolívia e do Equador, são eventos que confirmam a vitalidade dessa articulação regional4. Além disso, diversas iniciativas políticas recentes têm contribuído na extensão dessa escala para além dos limites formais do Mercosul, caso do lançamento em 2000 da IIRSA (Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana), da CASA (Comunidade Sul-Americana das Nações) em 2003, e dos inúmeros acordos voltados à integração energética e as relações fronteiriças em geral. Por isso, e independentemente do fato dos “olhares externos” continuarem a nos ver, simplesmente, como latino-americanos, e do quanto nós mesmos dissolvermos as diferenças e introjetarmos esse antigo rótulo, o que nos motiva de fato é tentar compreender o que está se desenvolvendo nessa nova região do mundo chamada América do Sul.

A Arquitetura das relações internas

13Do ponto de vista da construção do ambiente institucional de integração regional, a América do Sul conta atualmente com dois grandes Tratados Multilaterais. O mais importante é o Mercosul, que atualmente abrange cinco países (a maioria deles situada no chamado Cone Sul) e no âmbito do qual têm sido acordados e postos em operação os principais mecanismos que regulam a configuração de um amplo e diversificado conjunto de relações de cooperação, cujos impactos tendem a se projetar para os demais países vizinhos do Bloco Regional. O segundo é a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), mais antigo, e que reúne os países da Cuenca Amazónica – Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela - que tem passado por um processo de fortalecimento na sua estrutura institucional, e que tem como objetivo principal a articulação de políticas e ações comuns em torno das questões ambientais e outras correlatas para a Amazônia, tais como a defesa da soberania, a proteção dos ecossistemas e o uso sustentável dos seus recursos naturais em geral. Além deles, dezenas de antigos e novos acordos multilaterais e bilaterais de cooperação têm assegurado o rápido processo de adensamento das redes de fluxos intra-regionais, abrangendo áreas diversas que vão desde regulações comerciais sobre matérias específicas, passando pelas questões relativas à cooperação para o controle e a gestão das áreas de fronteira, o fluxo de migrantes, a educação, a ciência e a tecnologia, o meio ambiente, a segurança pública, até os assuntos especificamente militares.

14Após um período de queda nos volumes de comércio exterior intra-Bloco, a partir de 2003 tem ocorrido uma rápida retomada dos indicadores favoráveis, um processo que tem sido estimulado pela conjunção de fatores internos e externos aos países, podendo-se destacar a recuperação econômica da Argentina, o crescimento sem precedentes das exportações brasileiras, atualmente na casa dos US$ 100 bilhões, e a manutenção de um vigoroso crescimento da economia mundial. Nesse quadro de retomada do dinamismo econômico regional e internacional, permanecem e se acentuam, contudo, as assimetrias entre as economias nacionais, podendo-se relevar o fato de que o Brasil foi responsável por mais de 80% das exportações totais do Bloco e que esse dinamismo ainda depende em grande parte do comércio bilateral Brasil-Argentina. Sob esse aspecto, deve ser dada especial atenção ao significado do recente ingresso da Venezuela, um país que conta atualmente com um formidável poder de fogo no comércio internacional, representado pelas suas imensas reservas de petróleo e gás natural e a sua agressiva comercialização externa desses produtos e dos seus derivados, parte da qual está agora se direcionando para os seus aliados e vizinhos sul-americanos. Apesar dessas assimetrias, deve ser assinalado que os últimos relatórios do Mercosul apontam que nos últimos anos todos os países do Bloco tiveram, em média, mais de 30% de crescimento em seu comércio exterior em geral, mantendo-se estável a participação relativa do comércio intra-regional.

15Deve-se notar, entretanto, que nos últimos cinco anos o processo de integração regional tem passado por mudanças substantivas, dentre as quais podem ser destacados os novos elementos que compõem essa arquitetura. Dentre eles, merecem especial atenção os macro-projetos de integração física da região estruturados e implementados pelo IIRSA (Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana), os diversos empreendimentos de integração energética sob o impulso da iniciativa de governos e empresas e, finalmente, os fluxos de investimentos produtivos das grandes empresas privadas regionais e extra-regionais.

16O programa multilateral IIRSA, lançado em 2000, reúne um total de 72 projetos distribuídos em 12 Eixos de integração física, abrangendo todos os modais de transportes e que tem por objetivo mais amplo implantar uma extensa rede de circulação no Sub-Continente. Ela se concretizará através dos Corredores norte-sul e leste-oeste (bi-oceânicos) no primeiro nível, e nas demais escalas regionais com redes capilarizadas que promoverão o adensamento dos fluxos como um todo. Nos dois casos, os projetos procuram aproveitar a antiga e incipiente rede de circulação macro-regional (mais densa na sua porção meridional) e as redes nacionais disponíveis nas demais escalas dos países-membros. Eles envolvem a construção, a ampliação e a recuperação de rodovias, ferrovias, hidrovias e instalações portuárias, principalmente, e contam com o financiamento de três instituições financeiras com atuação multilateral na região: o BNDES, o FONDOPLATA e a Caixa Andina de Fomento.

17Além dessa iniciativa de natureza multilateral, essa nova estrutura de relações tem provocado impactos positivos nos países-membros do Bloco, no que concerne às suas respectivas políticas públicas territoriais. Isto tem sido observado, notadamente, em alguns projetos bilaterais – casos das ligações Brasil-Venezuela, Brasil-Perú e Argentina-Chile - e nos respectivos programas nacionais em logística de transporte, já que, doravamente, eles tendem a incluir as várias possibilidades de projeção externa das suas novas redes de circulação. Os programas de investimentos em infra-estrutura de transporte do Brasil, Argentina, Chile e Peru, por exemplo, já denotam essa nova tendência na região, nos quais ganha destaque a nova logística portuária marítima e fluvial, agora de escala Sub-Continental e as suas conexões de todos os tipos e escalas com a imensa e diferenciada hinterlândia, na qual a expansão dos agronegócios – da soja principalmente – tem impulsionado essa dinâmica. Dela participam ainda os atores públicos e privados locais das zonas costeiras e fronteiriças, dos entroncamentos, pólos e aglomerados urbanos de todas as ordens e das suas respectivas áreas de influência, todos interessados nas novas oportunidades econômicas geradas pelos investimentos em infra-estrutura e, em seguida, pelos novos negócios. Como no caso da União Européia, trata-se de programa que envolverá ao menos duas ou três décadas, devendo-se considerar os agravantes, daqui, representados pelas conhecidas limitações das economias nacionais, as enormes distâncias envolvidas e as dificuldades representadas pelas características físico-naturais peculiares da região para ligações terrestres, como são os casos da Cordilheira dos Andes e da Floresta Amazônica, por exemplo.

18Com relação à integração energética, ela pode ser examinada segundo pelo menos três fases principais da sua implantação: a) as antigas hidroelétricas binacionais (Brasil-Paraguai e Argentina-Uruguai) e os diversos gasodutos ou oleodutos Argentina-Chile, Bolívia-Argentina e Venezuela-Colômbia, por exemplo; b) o extenso gasoduto Bolívia-Brasil, a linha de transmissão Venezuela-Brasil e o projeto de interligação total da rede de energia elétrica do Brasil com as do Uruguai e Argentina e; c) os acordos bilaterais envolvendo principalmente o estabelecimento de joint ventures entre empresas estatais e as suas coligadas para a exploração, o refino e o processamento de petróleo e de gás natural. Neste caso, lembre-se que praticamente todos os países da região dispõem de reservas de hidrocarbonetos em volumes variados, sendo a maior parte deles auto-suficientes nesse tipo de energia. A esse respeito, destaque-se o exemplo do Brasil, que a despeito de só recentemente ter alcançado a auto-suficiência em petróleo, conta com o elevado desempenho da Petrobrás e a sua avançada tecnologia na exploração em águas profundas da Plataforma Continental, e que está posicionada atualmente como uma das 100 maiores empresas do mundo e com atuação em diversos países, aí incluídos alguns vizinhos sul-americanos. Frise-se que essa presença, por vezes ostensiva, como a que ocorre na Bolívia, por exemplo, tem provocado reações do atual governo desse país em torno de questões como o domínio sobre reservas, e o preço anteriormente acordado do gás natural que flui para o Brasil pelo já citado gasoduto.

19A posição da Venezuela na atual conjuntura, contudo, é singular, já que esse país detém uma das maiores reservas conhecidas de petróleo (e gás) do mundo e integra o seleto grupo de países que são os seus grandes produtores e exportadores. A agressiva política externa do governo atual de Hugo Chávez tem tirado enorme proveito dessa posição do país, estabelecendo acordos e parcerias com praticamente todos os seus vizinhos sul-americanos e caribenhos, alguns deles moldados com claros propósitos políticos, como são os casos do fornecimento de petróleo e de seus derivados a preços subsidiados - ou mediante trocas por bens ou serviços - para Cuba, Nicarágua, Equador, Uruguai e Paraguai. Além disso, a estatal venezuelana de petróleo (PDVSA) está firmando parcerias com as suas congêneres do Brasil, da Argentina e da Bolívia que prevêem a instalação de refinarias e usinas de processamento nesses países. O seu projeto mais ambicioso, entretanto, é o de levar adiante um empreendimento regional de grande impacto, em parceria principalmente com o Brasil e a Argentina. Trata-se da implantação de um gigantesco gasoduto entre o norte venezuelano e Buenos Aires (o Gasoduto Norte-Sul), com uma distância de aproximadamente 7.000 km e um orçamento estimado de US$ 27 bilhões.

20O terceiro suporte dessa nova configuração regional é representado pela atividade que aqui se desenvolve pelo grupo das empresas multinacionais, sendo que parte delas, diga-se de passagem, é originária de países da própria região. Um pequeno, mas poderoso grupo é aquele constituído pelas empresas estatais (e as suas parceiras privadas) da região, ligadas à produção e distribuição de energia e à sua ampla gama de atividades correlatas, de modo geral concentradas nos setores de petróleo e gás e no da hidroeletricidade. Contando com uma grande capacidade de investimentos e uma logística sofisticada que lhe permite operar e controlar com desenvoltura negócios e atividades nessa e em outras escalas ampliadas, essas empresas têm logrado tirar proveito das facilidades propiciadas pelos seus respectivos governos nacionais e pelo atual quadro de franca cooperação que tem presidido as relações de vizinhança. Nesse sentido, elas desempenham um papel essencial não apenas na integração energética, mas na consolidação em geral dessa nova arquitetura regional de relações.

21Outro grupo é aquele integrado pelas grandes empresas privadas brasileiras, com destaque para aquelas da área da construção civil e da engenharia em geral, as quais possuem hoje parte considerável do seu portfólio de obras e investimentos concentrada nos países sul-americanos. Além disso, essas empresas multinacionais brasileiras passaram a contar, desde 2005, com uma linha específica de financiamento do BNDES para apoiar novos investimentos no exterior, além daquele destinado principalmente à exportação de serviços, em geral na engenharia especializada. Frise-se que o Brasil dispõe atualmente de US$ 70 bilhões direcionados para Investimentos Diretos no Exterior, um montante que recentemente superou essa modalidade de fluxo de capital que tem sido recebido pelo próprio país.

22Finalmente, aquele grupo mais importante e tradicional, integrado pelas empresas multinacionais extra-regionais, algumas das quais com atuação centenária por aqui. Com relação ao seu comportamento em geral, deve-se pôr em relevo o fato de que nos últimos tempos, muitas delas têm alterado as suas estratégias com relação aos novos investimentos e às suas operações na região. Beneficiadas pelas facilidades e oportunidades criadas pelo Mercado Comum e a integração como um todo, elas dispõem agora da alternativa de focar o seu planejamento baseando-se não apenas nas vantagens comparativas e competitivas de cada país per si, mas também naquelas mais promissoras, propiciadas pelo ampliado mercado do novo espaço regional, que constitui na verdade um grande espaço econômico estruturado à escala Sub-Continental. Desse modo e, sobretudo, no que concerne às empresas industriais, elas estão se adaptando rapidamente ao novo quadro político e econômico, por encontrarem agora condições mais flexíveis para expandir os seus negócios. Esta nova configuração faculta-lhes, por exemplo, adotar uma estratégia que compreenda manter ou implantar o seu centro de gestão em São Paulo (principalmente) ou em Buenos Aires, fechar as suas fábricas menos rentáveis nos outros países (substituindo-as por um escritório de vendas) e concentrá-las de preferência em um só país e, neste caso, procurando localizá-las em sintonia com as facilidades fiscais e outras, oferecidas pelos governos sub-nacionais.

Mapa 2: América do Sul, esquema Básico de Regionalização a partir dos Fluxos

Mapa 2: América do Sul, esquema Básico de Regionalização a partir dos Fluxos

Fragilidades estruturais do sistema regional

23Como já nos referimos, são acentuadas as assimetrias de poder e de desenvolvimento econômico no interior do Mercosul e da América do Sul e elas constituem hoje a principal causa da sua fragilidade. E isto está refletido não apenas no que se refere a indicadores como as disparidades entre os PIBs nacionais ou os rendimentos médios das suas populações mas, principalmente, nas suas conseqüências sociais e políticas locais - como as crises e instabilidades internas – amplificadas nos últimos tempos pelas mudanças na economia impulsionadas pela globalização. Nesse ambiente internacional de exacerbada competição, cujos efeitos estão se desdobrando rapidamente na região, os países com forte tradição agrária e que não lograram implantar estruturas e atividades industriais e de serviços razoavelmente avançados, tendem à estagnação, ao retrocesso e às crises recorrentes. Foi com essa perspectiva que eles apostaram na estratégia da integração regional, justamente porque vislumbraram nas novas relações de cooperação a oportunidade de alavancarem os seus respectivos projetos nacionais de desenvolvimento.

24Sob esse aspecto, interpõe-se um abismo entre a nossa experiência e a européia. Primeiro, porque muitos dos seus mais decisivos (e muitas vezes dolorosos) passos para a sua integração foram dados ao longo de quase sessenta anos de percurso, alguns deles em conjunturas políticas e econômicas mais favoráveis que a atual. Segundo, porque além dos conhecidos desníveis quanto ao nível de desenvolvimento econômico entre as duas comunidades regionais, a União Européia conta com um reduzido, mas poderoso grupo de economias nacionais que lhe dá a sustentação financeira necessária para operar os seus diversos programas multilaterais, dentre os quais aqueles que são destinados especificamente para o combate às assimetrias e disparidades de toda ordem entre os países e as regiões do Bloco. O primeiro e mais importante desses instrumentos é o FEDER (Fonds Européen de Développement Regional), criado em 1975, e que foi seguido mais tarde pelos Fundos de Coesão instituídos pelo Tratado de Maastricht, em1993. Juntos, eles formam o que ficou conhecido como Fundos Estruturais, cuja atuação tem sido decisiva para promover o crescimento econômico e a modernização de regiões (ou países inteiros) estagnadas ou em situações de crise, mediante alocações de vultosos recursos (€213 bilhões no período 2000-2006) em infra-estrutura, nos segmentos da economia com potencial para promover a atração de investimentos e, além disso, em programas de educação, ciência e tecnologia e cooperação internacional, dentre outros.

25A recente decisão do Mercosul de implantar mecanismos similares a esses - aqui eles também serão chamados de Fundos Estruturais - decorre justamente da constatação de que uma postura de inércia diante do atual quadro de desigualdades e de crises a elas associadas no seu interior seria fatal, pois são elas que estão hoje comprometendo seriamente o seu futuro. Dito de outro modo, e assumindo que neste caso predomina a perspectiva da geopolítica e da política internacional inspiradas no realismo político, o cálculo estratégico dos parceiros mais fracos ou menos desenvolvidos de um Bloco Econômico ou Político tende a ser, em última instância, rigorosamente o mesmo daquele dos mais fortes e desenvolvidos. Isto porque as alianças entre os estados, como sabemos, dependem das circunstâncias, das conveniências e dos objetivos comuns, mas as condições para a sua permanência, invariavelmente, serão dadas na justa medida em que os seus protagonistas pratiquem, permanentemente, a arte de promover a convergência desses propósitos e ações gerais com os legítimos - e muitas vezes divergentes - interesses nacionais.

26Por outro lado, é notório que a decisão de rejeitar (de fato) a proposta norte-americana para a criação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) – posição assumida principalmente pelo Brasil e a Argentina e agora bastante reforçada com a presença da Venezuela – foi construída com base em argumentos diversos, mas sempre enfatizando a antiga estratégia de preservar e fortalecer o Mercosul enquanto a plataforma a partir da qual seriam conduzidas as futuras negociações com blocos ou países extra-regionais. Frustrados em sua tentativa de enlaçar todo o Continente, os EUA adotaram estratégia alternativa. Apostaram, sucessivamente, na consolidação do NAFTA, no apoio decisivo à constituição do CAFTA e numa agressiva movimentação diplomática visando a celebração de acordos bilaterais de livre-comércio com os países sul-americanos. Como resultado desta sua nova política, firmou recentemente acordos desse tipo com o Chile, a Colômbia e estabeleceu um similar com o Equador, que não chegou a assiná-lo (e é muito provável que o seu atual Presidente não o faça). Além disso, os EUA estão no momento intensificando o emprego dos seus argumentos persuasivos (o soft power de que fala Joseph Nye) na direção do Uruguai e do Paraguai, que são justamente os países que mais têm manifestado em público os seus descontentamentos com a performance geral do Mercosul para os seus respectivos objetivos de desenvolvimento. Cientes de que essa constitui, no momento, a mais grave ameaça de ruptura do Bloco Regional, os governos do Brasil, da Argentina e da Venezuela têm se desdobrado para abrandá-la, utilizando para isso providências que incluem a adoção de políticas compensatórias direcionadas a esses dois países, a exemplo dos Fundos Estruturais, dos projetos de infra-estrutura energética e de transportes, além do fornecimento de petróleo venezuelano a preços subsidiados.

Fricções e instabilidades nas relações internas

  • 5  Ver a respeito o notável trabalho de Oliveira, E.R., “Democracia e Defesa Nacional: a criação do M (...)

27Os analistas em geral reconhecem que não prevalece mais na atualidade o tradicional quadro de rivalidades entre os estados nacionais que caracterizou a América do Sul até aproximadamente o início dos anos noventa. Ao mesmo tempo, e enquanto mudança de certo modo associada, também perderam fôlego as velhas fórmulas geopolíticas de inspiração francamente competitiva e expansionista que predominaram durante muitas décadas em segmentos dos aparatos de estado dos países da região, algumas delas mal disfarçando os seus projetos de hegemonia. Como sabemos, o aprofundamento das relações de cooperação Brasil-Argentina a partir dos anos oitenta – na qual a rejeição conjunta às armas nucleares é emblemática - os processos de redemocratização em todos os países e a decisão pela integração regional, constituem as novas bases sobre as quais estão assentadas as políticas estratégicas atuais dos estados da região. A esse respeito, cabe destacar dois elementos que bem ilustram esse processo de mudanças. Primeiro, o fato de que como parte do contexto da redemocratização, todos os países decidiram implantar os seus respectivos Ministérios da Defesa, o que implicou num reordenamento significativo das funções do estado nesse campo, ao reconhecerem e atribuírem uma natureza civil às estratégicas atividades de elaboração e coordenação das Políticas de Defesa Nacional5. Segundo, porque a tendência é que essas políticas passem a destacar expressamente os seus objetivos gerais de política exterior baseados no respeito ao direito internacional e na convivência pacífica e de cooperação e, particularmente, no que se refere às suas relações sul-americanas.

28A atual Política de Defesa Nacional brasileira é explícita a esse respeito e a sua aprovação em 2005 foi o resultado de um amplo processo de consultas, debates e de elaboração coletiva envolvendo segmentos diversos de especialistas e representantes da sociedade civil, além do Congresso Nacional. No seu Capítulo “O Ambiente Regional e o seu Entorno Estratégico”, o documento dedica-se a examinar os aspectos mais amplos do atual quadro sul-americano, para em seguida destacar a importância de uma estratégia que vise aprofundar os laços do país no Sub-Continente – sobretudo via o Mercosul – aí incluída a necessária prioridade atribuída à segurança regional. Ressalta, por isso, a configuração geopolítica do país, aliada à sua relevância no contexto regional, fatores que reforçam a tendência de que praticamente todos os eventos envolvendo as relações internacionais nessa escala repercutam nele em alguma medida. Do mesmo modo, os seus movimentos na região, sejam eles diplomáticos, político-estratégicos ou da órbita econômica, tendem a impactar direta ou indiretamente todo o sistema de países, uma característica que é intrínseca à sua atual posição e que lhe proporciona vantagens nas negociações externas, mas que pode lhe carrear, em contrapartida, ressentimentos e eventuais fricções nessas cada vez mais estreitas relações de vizinhança.

29Com a Argentina, por exemplo, são recorrentes as divergências em torno de ajustes e regulamentos abrangendo diversos tópicos do comércio bilateral e, em alguns casos mais graves, elas têm conduzido os dois países a disputas (extra-Bloco) junto à OMC. Além disso, o atual governo argentino está aliado ao venezuelano na proposta de que seja criado um organismo financeiro multilateral do Mercosul (O Banco do Sul), o qual poderia desempenhar os atuais papéis do Banco Mundial e do BID na região, mas que na prática funcionará ao mesmo tempo como um freio ao virtual monopólio exercido pelo BNDES no financiamento dos diversos programas de âmbito regional. Quanto ao Paraguai, vez por outra afloram manifestações do seu governo com respeito à presença do grande contingente de brasileiros (os “brasiguaios”) que ali vivem e que é integrado, sobretudo, por pequenos e médios agricultores dedicados ao cultivo da soja. Além disso, recentemente veio à tona com mais vigor, o questionamento em torno do preço da energia da binacional Itaipu pago pelo Brasil ao país, considerado por este como inferior ao que é praticado no mercado internacional.

30No caso da Bolívia, e malgrado a cordialidade das relações entre os seus atuais governantes, os Presidentes Lula e Evo Morales, destacam-se os problemas, já mencionados, envolvendo a forte atuação da Petrobrás no país, que está tentando agora negociar os novos termos da sua presença em meio aos impactos da decisão boliviana de nacionalizar as reservas e as atividades de exploração e refino de petróleo, a qual culminou na ocupação das instalações da empresa por tropas do exército. Esse quadro de conflitos, inclui também a decisão do atual governo da Bolívia de forçar a abertura de uma complicada rodada de negociações em torno da revisão do contrato internacional para o preço do gás que fornece ao Brasil, um insumo do qual é forte dependente, e que tem sido utilizado principalmente nas suas atividades industriais e no seu programa de ampliação das termoelétricas. Um outro potencial foco de atritos está relacionado ao que ocorre na Zona de Fronteira, ao sul e ao norte. No primeiro caso, ele decorre da forte presença de fazendeiros brasileiros – em geral sojicultores – no Departamento de Santa Cruz que, segundo alegações do governo boliviano, têm se envolvido politicamente no apoio aos movimentos autonomistas (mais precisamente separatistas) desse e dos demais departamentos das terras baixas da banda oriental do país. No norte, e como que repondo em escala menor os eventos do início do século passado, está se intensificando a expansão de agricultores e pecuaristas brasileiros na área da Tríplice Fronteira (Brasil-Bolívia-Perú), um fluxo que parte principalmente de Brasiléia e Assis Brasil, no estado do Acre, para a direção de Cobija (Bolívia) e Pucalpa/Ibéria (Perú). Finalmente, registre-se que a decisão brasileira de construir duas hidroelétricas no Alto Rio Madeira, em áreas relativamente próximas à fronteira, tem motivado o governo boliviano a reivindicar compensações – sob a forma de pagamento de royalties, por exemplo – aos supostos prejuízos decorrentes dos potenciais impactos ambientais desses empreendimentos sobre o seu território.

31Também há focos de divergências e de potenciais conflitos na região em geral, decorrentes de antigos contenciosos que vez ou outra afloram com maior ou menor intensidade. O mais dramático deles, e provavelmente o mais emblemático imbroglio geopolítico do Continente Americano, é aquele representado pela questão da saída boliviana para o Pacífico, o mais destacado dos resultados da guerra do mesmo nome e que até hoje ocupa intensamente o imaginário popular e as estratégias de estado desse país. E é esse quadro que também tem justificado a natureza básica da estratégia adotada pela atual política de defesa do Chile, o qual à medida que acentua a extroversão nas suas fronteiras com a Argentina, mantém um aparato de contenção na sensível zona fronteiriça com a Bolívia, definindo-a desse modo como provavelmente a mais militarizada da região na atualidade.

32Atualmente, têm também adquirido significado de crise diplomática os atritos entre a Argentina e o Uruguai, como conseqüência da decisão deste último de autorizar a instalação de duas grandes plantas industriais de celulose e papel nas margens do Rio Uruguai, na sua fronteira, portanto, com aquele país. A iniciativa uruguaia suscitou manifestações veladas de desagrado por parte do governo argentino e, especialmente, desencadeou protestos e uma intensa mobilização da sociedade civil argentina na rejeição ao referido projeto, tendo como alvo principal os potenciais danos ambientais causados pelo empreendimento. Esse episódio, somado ao clima de descrédito de setores da sociedade uruguaia e ao desconforto do seu governo com o Mercosul, como já mencionado, tem contribuído para colocar em dúvida a continuidade do engajamento desse país no movimento de integração.

33Na fronteira entre o Peru e o Equador, por seu turno, persiste o antigo contencioso que já levou esses países a diversos conflitos, sendo que o último deles culminou em grave confronto militar, um evento que exigiu uma rápida e firme gestão apaziguadora por parte dos governos do Brasil e da Argentina. Além disso, entre a Colômbia e a Venezuela, vez por outra afloram idiossincrasias e pronunciamentos de protesto dos dois governos, também neste caso envolvendo contencioso fronteiriço, além de atritos relacionados a temas diversos (como a alegação colombiana de que a Venezuela apoiaria as FARC), compondo um cenário de crise que tem se agravado na atual conjuntura, dadas as sérias divergências ideológicas e políticas dos seus respectivos governos nacionais. Esse quadro tem sido agravado, ademais, pelas constantes e contundentes críticas do Presidente Hugo Chávez aos seus colegas da Colômbia e do Perú devido às suas recentes decisões de celebrar acordos de livre-comércio com os EUA que, a seu ver, solapam a estratégia de fazer do Mercosul o único mecanismo de integração regional.

Quadro 2 : Conflitos na América do Sul

Quadro 2 : Conflitos na América do Sul

Mapa 3 : Conflitos na América do Sul

Mapa 3 : Conflitos na América do Sul

A Amazônia: uma aguda questão brasileira e sul-americana

34A Amazônia sul-americana ou Gran Amazonía possui 7,5 milhões de Km², abrange oito países e a Guiana Francesa (um Departamento Ultramarino), sendo que 70% dela estão situados em território brasileiro (cinco milhões de Km²), e na qual se encontram a maior bacia hidrográfica e a mais extensa floresta tropical do planeta. Do ponto de vista da abordagem aqui adotada, interessa antes de tudo retomar e pôr em relevo dois temas interligados e de grande importância atual, com o foco dirigido principalmente para o caso brasileiro. O primeiro é o da sua importância estratégica para os países sul-americanos em seus respectivos projetos nacionais de desenvolvimento e para os seus esforços atuais de integração Sub-Continental. O segundo é o da crescente ingerência de governos e organizações estrangeiros na definição das políticas nacionais de ocupação e uso desses territórios e dos seus respectivos recursos, e do seu virtual “aprisionamento” em uma cada vez mais estratégica agenda ambiental internacional ou global.

35Mesmo que premidos pelas circunstâncias atuais, tenhamos que relativizar a importância do conteúdo robbesiano e ratzeliano do estado nacional, inclusive porque é evidente a erosão do seu poder em todo o mundo, é fora de dúvida que para toda e qualquer sociedade, mas especialmente para países pobres ou periféricos, os territórios nacionais ainda constituem, além da base material da soberania e um patrimônio a ser preservado a todo custo, um valioso ativo nas relações internacionais. Para muitos povos, inclusive, os territórios e o seu conteúdo são tudo o que lhes resta, a sua retaguarda e o seu fôlego. Notadamente em um mundo marcado pela acirrada competição global e as desigualdades, é disso que essas nações dependerão no futuro para a sua sobrevivência. Daí a relevância intrínseca – ou o valor estratégico - dos territórios nacionais distribuídos na Amazônia, cuja importância pode ser avaliada pela sua extensão (55% do Brasil, por exemplo) e pela riqueza dos seus recursos naturais. A Amazônia brasileira, por exemplo, conta atualmente com mais de 20 milhões de habitantes, sendo que mais de 60% deles vivem em áreas urbanas e, a exemplo do que ocorre nos países vizinhos, a grande maioria dessa população não dispõe da infra-estrutura e dos serviços básicos disponíveis nas demais regiões. Além disso, nela estão distribuídas duas centenas de povos e comunidades indígenas e uma grande diversidade sócio-cultural formada pelas suas comunidades tradicionais isoladas. Também ali estão concentrados recursos hídricos abundantes, praticamente todo o potencial hidroelétrico remanescente do país, algumas das maiores províncias minerais do mundo (incluindo “minerais estratégicos”) e a mais formidável diversidade biológica do planeta.

36Os efeitos dos programas de integração nacional dos anos sessenta em diante e, em especial a alocação de infra-estrutura de circulação básica e aérea, e a de comunicações, ficaram mais evidentes nos anos noventa. Junto com os brasileiros que para lá se dirigiram em grande número, atraídos pela expansão da fronteira agrícola, principalmente, cresceu também a presença dos estrangeiros na região. Parte dela instalou-se sob a forma de empresas que passaram a adquirir grandes extensões de terras para finalidades diversas, e uma maioria desses grupos encontra-se abrigada em organizações de diversos tipos, nelas predominando os missionários católicos e protestantes e os militantes ligados às causas ambientais e indígenas.

37Sob esse aspecto, destaque-se que a presença desses segmentos abrange atualmente todos os países amazônicos, sendo que a sua atuação tem sido mais observada no Brasil em função da sua crescente desenvoltura nos diversos fóruns de debate, nos movimentos sociais em geral e, inclusive, em torno ou no centro do aparelho de estado. Ademais, programas de grande envergadura conduzidos nos anos recentes pelo governo e destinados à proteção das suas florestas – caso do PPG7 - contam com doação integral de governos estrangeiros, com forte e óbvia participação dos seus representantes no processo da sua implementação. Frise-se a propósito que um dos seus projetos principais, esteve focado especificamente em um esforço concentrado (cinco anos) na demarcação de terras indígenas no Médio e Alto Rio Negro e no Alto Solimões, na segunda metade dos anos noventa, foi integralmente executado com recursos doados pelo governo da Alemanha, e conduzido sob a coordenação de uma ONG brasileira e a supervisão da agência de cooperação técnica daquele país. Trata-se de projeto que envolveu um montante de recursos de duas dezenas de milhões de euros, e que foi responsável pela demarcação de terras indígenas compreendendo um total de mais de 200.000 Km², uma área equivalente ao estado de São Paulo.

38Esse cenário envolve ainda o crescimento das atividades ilícitas de todo o tipo ao longo dos seus 8.000 Km de fronteiras, tais como o contrabando de madeira de lei, minérios raros, ouro e pedras preciosas, animais e, especialmente, o tráfico de drogas. Quanto à tão mencionada biopirataria, os fatos indicam que é ingenuidade supor que a sua prática se faça pelos mesmos meios empregados nos demais fluxos ilícitos. No lugar de transportar plantas e animais peçonhentos in natura, por exemplo, muitas empresas farmacêuticas ou grupos a elas associados preferem utilizar meios mais sofisticados, tais como o transporte de pequenas frações de amostras de extratos vegetais e toxinas animais, ou mesmo o envio de informações precisas, sobre a composição química e os eventuais princípios ativos presentes em biomoléculas obtidas nesses extratos.

39Atualmente os laboratórios de pesquisa de empresas e universidades do exterior, envolvidos na bioprospecção, passam por um vertiginoso processo de sofisticação, onde já se dispõe, por exemplo, de equipamentos como o high-trough-put-screening, capaz de analisar as propriedades químicas de mais de 2.000 extratos por hora. Além disso, os seus poderosos computadores aplicados à bioinformática, aliados aos avanços recentes dos programas do genoma humano e da química fina, permitem-lhes cada vez mais, ou simplesmente elaborar o design de drogas farmacêuticas sintéticas a partir de modelos virtuais, desenvolvendo-as em seguida mediante “ensaios de bancada” e em testes clínicos (fator que reduz o valor da biodiversidade como ativo nessa estratégica área da biotecnologia e da bioindústria) ou, - e o que é mais prejudicial aos países detentores das matérias-primas florestais - partir de um modelo de biomolécula para em seguida sintetizá-la. Neste caso, como demonstrar que um determinado produto farmacêutico “sintetizado” em laboratório e com vendas globais não é, na verdade, uma droga derivada de propriedades naturais dos nossos recursos de flora e fauna e, assim, poder reivindicar direitos de “país detentor”?

40O segundo tema diz respeito à posição central ocupada atualmente pelos ecossistemas amazônicos, na cada vez mais importante agenda internacional dedicada ao grave problema planetário das mudanças climáticas e especificamente do aquecimento global. Há diversos grupos e redes de pesquisa envolvendo brasileiros e estrangeiros que têm se dedicado ao estudo sistemático sobre o funcionamento dos ecossistemas amazônicos, do ponto de vista das múltiplas interações floresta-solo-atmosfera nas suas diversas escalas de manifestação, isto é, Regional, Zonal, Continental e a Planetária. O mais abrangente desses programas é o LBA (The Large-Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in the Amazon), integrado pelo INPA, o INPE, a USP e a NASA, que envolve dezenas de pesquisadores e que contou com recursos financeiros e equipamentos do Brasil e da agência norte-americana. Durante sete anos essas equipes dedicaram-se a observar, registrar e analisar as relações da floresta com o clima, contando para isso com torres, aeronaves e sensores especiais, capazes de monitorar in loco as trocas de gases e partículas (os aerosóis) em áreas previamente selecionadas da região. Esse programa gerou centenas de trabalhos publicados em revistas prestigiadas da área e um enorme reconhecimento internacional pelos resultados que alcançou. Alguns deles eram razoavelmente conhecidos dos especialistas, como é o caso da forte influência dos eventos climáticos amazônicos sobre a Bacia do Prata (principalmente pelo fluxos de umidade e o aumento nos volumes das chuvas) como um todo, isto é, toda a extensão meridional do sub-continente. Nesse caso, é óbvia a associação entre a expansão dos desmatamentos e queimadas da região e os seus impactos negativos sobre o clima de toda a América do Sul.

41Um segundo grupo de resultados dessas pesquisas, tem conteúdo e implicações mais complexas para o futuro da Amazônia. Eles demonstram que as florestas da região, apesar de emitirem diversos gases de efeito estufa (dentre eles o CO²) com o desmatamento, as queimadas e as mudanças no uso da terra, ainda assim elas absorvem uma quantidade muitas vezes maior de gás carbônico, uma evidência de que estão se confirmando as antigas suposições de que a Amazônia funcionaria como um imenso sumidouro de carbono. Em outros termos, se as florestas amazônicas absorvem uma grande quantidade desse gás que é emitido principalmente pelos países mais industrializados do mundo, então elas prestam à humanidade um serviço ambiental vital e de escala planetária.

42Esta é a boa notícia, já que essa sua peculiaridade faz aumentar o seu valor intrínseco – e, portanto, o seu ativo – e isto poderá propiciar melhores condições de negociação internacional aos países amazônicos e especialmente ao Brasil, que possui notória liderança nesse debate. A má notícia é que doravante, e mais do que nunca, recrudescem sobre nós as pressões internacionais com vistas ao virtual congelamento desse imenso território e, com isso, confir

Comentários